terça-feira, 1 de junho de 2010

‘O rumor do medo’

E o medo não vem do rumor, do ‘rumor da língua’? Pegajoso e contorcionista como um anelídeo em fuga; substância travosa nas papilas em pavor; o medo está na língua que profere e cala. Escarlate e violeta, todo subida e descida em esforço e disparada, o medo é o ressoar surdo das palavras, é o grito agudo inaudível. É sentimento líquido e veloz, o sentir escorrer em abismo de cachoeira; respinga cortante o medo; pingo de luz arco-íris ofuscado em escuridão. É tudo que dizem e disseram e desdisseram e retrataram e reviram e solidificaram como pedra diamante; indissolúvel o medo real. ‘Medinho’ não...Medinho é só um jeito de pedir carinho. Medo real é palavra guardada, severa na mente, refletida no corpo, pulsante no coração...Medo real carece muito mais que carinho medido, precisa afago descomedido, porque o rumor da palavra fica lá feito vento cortante, atávico...vento rumor de ditos que viajam sem sair do lugar, familiares, indeléveis na alma a escapar em humores ácidos e melancólicos...em rostos plácidos de terror...uma pintura irreconhecível...um rumor para o ouvir de orelhas de lobo, suspensas, sensíveis...


E seguindo a sugestão do amigo Paulo do Marcas d'água...

O poema pouco original do medo
De ALEXANDRE O'NEILL

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos.

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos.

4 comentários:

Paulo disse...

"...O medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)..."

Parabéns pelo seu excelente texto que me trouxe à memória o "Poema pouco original do Medo" de Alexandre O'Neill, poeta que lhe recomendo para conhecer.
Abraço

Keila Costa disse...

Obrigada Paulo pro me proporcionar essa visão 'surrealista' do medo de Alexandre O'Neill...pensando bem o medo é mesmo uma boca escancarada, faminta...
Abraço grande!

Nina Blue disse...

É verdade, o medo nos cala e nos direciona para o intransponível interno da nossa alma...Criatura, que lindo, lendo assim, o medo ficou até mais leve.

Ricardo Fabião disse...

ah os meus medos;
alguns tão profundos que são mais medos ainda;
e alguns de tão leves, que são distrações apenas;
outros até me impulsionam.

Todavia,

gosto deles como temas, como estrada para textos; nestes eu embarco sem medo, com mais olhos do que me cabem, sobretudo aqui.

Lindo, Keila;
não seria diferente.

Beijos.
Ricardo.