domingo, 4 de maio de 2008

Dendera

Às vezes sinto saudades, aquelas alegres, de lembranças boas, vivas ainda. Sinto também “sôdades”, de lembranças apertadas, do querer bem que não está mais por perto. Em noites de insônia, tenho a nítida impressão de que ela está em algum canto da casa, com seus olhos enormes, profundos. Ela chegou pequenina lá em casa, rajadinha, barrigudinha, apinhada de pulgas. Toda vez que dávamos a ela mingau de fubá, ela espumava copiosamente com aquela cara de falecimento iminente, numa tristeza profunda. Aparecida, uma vizinha e amiga, vinha a nossa casa e dizia: “ela tá magrinha demais; tem que dar muito mingau para ela”. Que idéia! Curiosamente, Dendera custou revelar seus dotes felinos; morria de medo de pular; não para o alto, mas para baixo; dava-lhe aquela sensação de vertigem, talvez a mesma da mistura desastrosa do leite com o fubá. Mas depois que começou suas aventuras de escaladora, era bagulho de estante caindo no chão; eu e mamãe ralhando; e pior, escondia-se atrás da porta, na surdina para agarrar nossos tornozelos.

Cresceu, as rajas alargaram; ela clareou de vez, tanto que começou suas incursões pelos muros, suas caçadas a pardais, borboletas e até asquerosas baratas. A gente ficava indignada: “Como pode Denda, fazer uma coisa dessas; coitada da borboleta, tão linda...” Quando era barata: “Que nojo Dendera; faz isso não!” A infância foi assim, cheia de peripécias, corridas de arrepiar o pêlo e enrolar a cauda, naquele estilo pra lá de descontraído, cheio de charme. No tempo de moça, foi um tormento. Os cios eram agitados; os olhos vidrados; bastava um trisco no corpo para soltar o gemido. Chegou até a se encontrar com um vira-lata em uma construção perto lá de casa. Retornava com os dedos da patas colados de cimento, com aquele ar de gozo eterno e de ‘ele vai vir atrás de mim’. O sem-vergonha não vinha e Dendera sofria; a gente indignada com aquele amor vagabundo e aquelas reações escandalosas. Mamãe dizia: “Uma gata tão bonita dessas cruzando com vira-lata...” Tudo só ficou mais ou menos resolvido quando adotamos o Lu; esse era garanhão de primeira. Com seis meses já deu um sossego relativo nela. Mas ela tinha uma má vontade danada com ele; o gozo era discreto. Resumindo: a coisa era meio forçada. Deduzimos então que ela tinha gosto mesmo era pelos vira-latas. O primeiro parto foi meio atabalhoado, desajeitado. Dendera levava aquelas bolinhas de pêlo pra nossa cama como que pra fazer festa. Nas próximas crias, não sei se por ciúmes ou madureza, resguardava-os mais, ficava esticadinha na caixinha, e tinha um prazer imenso naquelas boquinhas desdentadas e naquelas unhinhas frenéticas no seu abdômen. Os veterinários diriam: “essa tem mesmo habilidade materna”. Nós dizíamos: “ela é uma ótima mãe”.

Os anos se passaram, muitos cios e crias. Em casa era uma festa de gatinhos fazendo estripulias. O amor da Dendera pela mamãe aumentando, tanto que dormiam até juntas; uma esticada do lado da outra, e eu dizia que era o ‘casal vinte’ da casa. Era um afeto tranqüilo, sem arroubos. Já o meu por ela, era exagerado, forçado, a gente brigava feito algumas irmãs. Agarrava Denda à força pra dar aqueles beijos estalados e ela rosnava para mim na sua maneira gatuna, exibindo os caninos e louca para me enfiar a unha. Mas pensava duas vezes ‘essa menina é doida coitada’ e não fazia nada. Quando a colocava no chão abanava o rabo meio nervosa e eu falava com a mamãe: Ta vendo mãe; ela gosta de mim...sei que ela gosta...Nunca tive certeza. Os últimos dias foram tristes. Denda foi acometida por uma virose muito grave e todas as tentativas de salvá-la foram vãs. Teve desespero no último dia, não queria morrer perto da gente. Mas foi embora e deixou-me pensamentos e sabedorias, embora muitos eu ainda não saiba usar. Sabia viver com uma naturalidade invejável, cultivou por minha mãe um sentimento nobre, sem egoísmos, mas de uma possessão delicada. Denda no início tinha medo do pulo do gato, mas depois foi mestre, nos mostrou que o pulo a gente dá aos poucos, na espreita.

2 comentários:

Unknown disse...

Como podem deixar tantas saudades?!
Eu não consigo explicar...são como familiares...sempre estarão nas histórias por nós relatadas. Foram 11 anos, 16 anos de convivência...como esquecer?! Simplemente não é possível!!!

Anônimo disse...

Keila, você conseguiu me emocionar.
Obrigada.
Elizangela