Histórias sempre estão na fronteira; por mais que tentemos acomodá-las elas esbarram no real vivido, ouvido, lembrado; elas esbarram no imaginado, sonhado, criado...por isso evocamos os entrelugares, onde cabem o contraditório, o surpreendente e até o esperado...todos eles permissíveis à intromissão do eu e também à sua ausência, mesmo disfarçada.
sábado, 12 de julho de 2008
'Estrela'
“Esse aí tem estrela”, dizem de quem tem de sorte. Cavalo ‘Estrela’ nasceu com estrela branca na fronte, bem destacada do pêlo castanho escuro, nem tão curto, nem tão comprido. Crina longa brilhante pra fazer trança, cauda cabeluda pra afastar pequenos seres voadores. Ganhou vida num campo amplo, em tarde fresca com pôr do sol. Pintor de natureza encheria os olhos e as mãos do clima bucólico, poético. As perninhas magrinhas, desequilibradas; levantou e caiu sucessivas vezes até o terceiro dia. Sugou leite, comeu erva. As pernas engrossaram, ganhou ferraduras. Veio a carroça, foi-se a estrela. Nas primeiras vezes relinchou, levou chicote. Depois calou, empacou, chorou e ninguém viu. Nem ele viu ninguém; colocaram vendas nos olhos, rédeas curtas, sobrepeso de coisa e de gente. As articulações incharam, calejaram. Um dia subiu gente sem conta, duas, três, quatro e pilhas de coisas na carroça. ‘É burro de carga, nasceu pra isso”, diziam. Até espora que “pinicava” o dono usava. Na subida o peso dobrava, o assombro paralisava; Estrela empacava, apanhava. Viveu assim vinte anos, com a estrela escondida; bicho de carga do homem de carga sem amor, bruto pela carga, de faces murchas, insones, sem brilho. Na velhice foram os dois: cavalos velhos sem dentes, com o sentimento da carga nos músculos, nos ossos, no coração; sem estrelas.
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Um comentário:
Olá qrida tou fazendo uma visitinha!!! Adoro ler seus textos!!!
Bjo!
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