Sofro. Sofro pela falta de momentos de desgarramento de mim mesmo. Preso na inconstante e forjada imaginação, me tomo de todas as delícias que a realidade não me permite, não me concede; porque também não se concedem delícias a ninguém, senão a um personagem qualquer, iludido no viver da realidade inexistente. Gostei de você, confesso! Gosto! Mil vezes confesso! Mas sem saber e crente ao mesmo tempo, certo como um devoto. Contudo, só o soube muito além da devoção e das possibilidades várias, irremediáveis e até improváveis.
Era tudo meio nebuloso mesmo, e ainda continua assim, escuro feito nuvem cinza, porém vagante, deixando o céu a descoberto por instantes. E nessa escuridão e por esse clarão, chego a sentir por momentos a solidez de um sentimento, irreconhecível, perdido e achado, perdido de novo e encontrado num lapso, num anuviamento da mente.
Agora tenho que admitir; gosto de você de um jeito estranho, não porque intuo que você não gosta e teimo em querer impossibilidades, mas porque você parece ter gostado de mim um dia, mesmo sem saber; disse que não sabia em olhos de interrogação; disse que sabia em olhos de contemplação.
O gostar de você, simplesmente, é o gosto do gosto dos pensamentos que me tomam todas a manhãs e em todas as horas que se fazem manhãs entre sono e lucidez, quando adormeço, por querer e não querer. E nos dias frios, em que o vento corta os intervalos da trama da lã da blusa, enrigela tudo por dentro, e a alma sonha sonhos de você. Algo que parece já ser o cume de uma geleira, apercebe-se quentura, por isso sente o gelo.
Até o cachorrinho castanho deitado na calçada imensa, com um tomate maduro, rubro ao extremo, diante de si, provoca-me arroubos de calafrios e febre, enquanto você me vem em passos firmes e entrevejo seus lábios vermelhos, quase fruta a derreter. E aquele senhor da vila, sentado na mesma calçada larga, encolhido, encurvado com seu cortador de unha a postos, extirpando as partes mortas, lembra-me ao longe uma fotografia de um parque distante, de alguém que não veio pra ficar, e dentro de mim se faz vila de outono, com folhas caídas, nariz enrubescido e olhos lacrimejantes.
Lembro-me de você e tenho dúvidas sobre se lembro de você ou do que imagino de você ou de mim com você, inimagináveis imagináveis, como num filme, a exata ficção; como na realidade, parca fragmentada, na (in)exata cadência do sentir.
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