sexta-feira, 17 de julho de 2009

Movimento fatal

Poderia escrever algo sobre aquela pipa preta vagando sobre o céu...Sim, poderia pensar na dança da ave negra e do planar solitário no azul, e descrever das mãos do menino naquele movimento firme e rítmico para manter a sensação alada; o vento a bater forte, a pressionar os quadrantes plásticos de uma transparência quase de asa. Alguém me disse algum dia que eu poderia grafar sobre qualquer coisa, até sobre a bula de remédio, já escrita e revolvida por olhos de comiseração por tantas contra-indicações e efeitos fantasmagóricos sobre os patógenos, que nossos olhos só podem ver às custas de cultivos mirabolantes, adocicados, e em grupos de magia colorida e fétida...Poderia discorrer sobre aquela desconhecida mulher grisalha apoiada no meio fio com olhar tenebroso e perdido de coragem, de só estar ali sob a mira dos olhos chocados de interrogação...Poderia dizer em palavras rotineiras da repetição do trabalho do escritório, dos ares de respostas obrigatórias, dos atendimentos telefônicos e das faces escondidas sobre a docilidade da voz, da pilha de papéis inertes e esquecidos sobre as mesas e do barulho insuportável do ar condicionado e dos carros lá fora...Poderia falar de qualquer coisa e grafar com ares poéticos...Mas sinto uma vaguidão qualquer e um sentimento de dizer e escrever o que ninguém jamais escreveu e mesmo assim, forçosamente, devo admitir que tudo já foi dito e escrito, e isso também já foi dito e redito... Pobre de mim, mas sonho e queria vestes irreconhecíveis pra que as histórias soassem novas, e as palavras estivessem ali feito leito manso de rio, a receber corpos animados e inanimados a transbordá-lo de outras vestes...Mas escrever essa primeira veste que se reveste irremediavelmente de outras eu queria...Queria não me identificar com nenhuma escrita, nenhum dito, e me apossar da palavra última, pra que ninguém mais a dissesse em qualquer combinação que fosse, pra não amargar o sofrer de imaginar que ela está lá de alguma forma. Queria a palavra esquecida e lembrada apenas por um instante, repetida sem lembrança de ser repetida...Queria e não queria, porque ao mesmo tempo que me toca o afã da originalidade, tocam-me também as reedições dos pensamentos, dos livros que nunca pensei fossem ler de mim ou de qualquer outro pobre fazedor de historinhas que fosse...porque foi dito e não foi dito está em qualquer lugar, na memória esquecida e nas virtuosidades da lembrança, do aconchego, do reconhecimento da palavra cotidiana, do afeto e do desafeto com a palavra...e o estranhamento da palavra é só um entrelugar que se desfaz e se refaz, e a ida pro lugar estranho e o retorno pra esse mesmo lugar já reconhecido é um movimento fatal de qualquer fazedor de histórias, vivedor de histórias...

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