terça-feira, 22 de setembro de 2009

O pregador

Ele já surgira assim, com aquela verve, com aquelas mãos postadas sobre a pasta preta, cheia dos textos sagrados, e o entorno dos olhos arroxeados como se a visão avançasse de tal maneira sobre o horizonte, que gastava o viço da epiderme e subsumia os globos oculares já pequeninos. Em verdade, seus olhos eram luzes apagadas frente ao contingente de ligações neuronais demandadas naquele momento sagrado, e não faltavam vocábulos apropriados, nem tão usuais, que davam esse teor de que há algo revelador no dito. Na fronte, os primeiros sinais de calvície, hereditária, e aquele nariz ligeiramente aquilino a fortificar o sorriso de dentes miúdos e intervalados. Era irmão por parte de pai, mas jamais ela o vira com consistência, nem na infância, nem na adolescência. Portanto, foi mesmo pregador desde o primeiro instante irreal tão real.

Apareceu quase divinizado após a terceira década de nascido, trazendo a mão calejada e histórias de uma união enganosa com a mulher e intrigas com os pais; e ele parecia realmente disposto a se redimir pela palavra, sem ganância alguma. Ela, a irmã, achava, verdadeiramente, estranho conhecê-lo assim tão personificado, sem as nuances do convívio próximo, a resguardar surpresas a cada momento e, mesmo assim, capaz de gerar aquele afeto pelas incongruências. Estranhava aquele absoluto dito, vivido, e, por isso, via-o com curiosidade, bem distante do afeto. Seu empenho maior era em pregar de casa em casa a palavra dita pelo senhor, registrada na Bíblia. Dizia; prego a Bíblia. Segundo alguns a religião dele não tinha templo nem liderança. Passava horas na marcação das idas às casas de familiares e outros que se dispusessem a ouvi-lo, e até mesmo contradizê-lo, para que a palavra sagrada compensasse tudo, como se já estivesse lá acabada, sem dúvidas para qualquer objeção. Levava uma companheira para suavizar o desgaste da pregação e dar aquele tom mais feminino, que muitas vezes amolece a alma.

A irmã admirava aquela habilidade, posto que, o discurso era de fato bem formulado, enriquecido por informações de outras ordens, até científicas e filosóficas, do tamanho infinito do universo, da pequenez e da grandiosidade, das interpretações falhas da Bíblia. Mas o paraíso usurpado, a Eva malfazeja, a cobra venenosa e os corpos do pó ainda eram o início de tudo, e ele buscava os minerais dos ossos e dos processos neuronais e fisiológicos para consubstanciar o fantástico, em meio à cientificidade do mundo moderno. E se o interpelavam sobre algum espírita reconhecido por bondade e resignação, sua companheira era a muleta certeira: ‘a maldade se esconde por traz da veste da bondade’. E assim aquele homem, em verdade ‘um lobo na pele de cordeiro’, era julgado sob a veste da intolerância. E o juízo final? ‘Esse não fora marcado, e o aquecimento global talvez seja mesmo o anúncio do fim do mundo’. E a reencarnação? ‘Ora, se houvesse mesmo, o mundo não teria melhorado? Por que tudo piora?’ E o destino existe? ‘ A gente tem o livre arbítrio, tudo uma escolha’. E a companheira do pregador, por vezes, complacente com o pecado; ‘não é o tamanho do pecado que vale, mas o tamanho do arrependimento’.

E assim o Deus misericordioso que sumia, ressurgia de tempos em tempos. Mas em nenhum momento qualquer escolha ou opinião era de fato considerada. A palavra final era vertida, num quase monólogo de duas bocas, e ele saía resoluto das pregações, com apertos de mão, empenhando-se na marcação da próxima.

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