quarta-feira, 23 de junho de 2010

Crochê

Aprendera crochê com a mãe. Algumas peças terminavam por duas mãos, ainda que fosse um pequeno acabamento a garantir a solidez da peça. Outras vezes era no decorrer o compartir, no crescer da peça, quase uma competição justa ponto a ponto, carreira a carreira, no ir e vir da agulha, meio. Sempre achara fabuloso um único ponto, uma única laçada formar tantas formas e figuras, e cobrir, e vestir, e enfeitar e aquecer. Admirava o crochê, processo e resultado, embora, muitas vezes, percebesse certos olhares a ignorá-lo, por desconhecer sua alma. Cada ponto e intervalo precisava ser medido com precisão imprecisa de dedos, um humano, pessoal, raridade no mundo fabril. Entrevia no crochê o amor da mãe, que nada há mais amável que ensinar e fazer junto. Entrevia no crochê a dedicação do tempo, o esforço da mãos para agradar, envolver pessoas e olhares, mimar. Tinha primas, tias ‘crochezeiras’; mas uma tia, em especial, já além do tempo da mocidade, permanecia moça na animação e no preparo dos vestidos rodados de crochê, das blusas aplicadas em flor, dos boleros, exatamente pra dançar juntinho boleros e outras danças no baile semanal. O crochê era atávico, parecia, por vezes. Era um gostar que passava por gerações, e quando escapava em alguém da família, era um nó ou um fosso, como um erro do crochê, um mimo que não se desenvolveu, um fazer que se perdeu. Certa vez com os escritos ‘desassossegados’, do poeta Fernando Pessoa, percebeu ainda mais a sutileza do crochê, sua semelhança com a cadência de viver. Amou-o mais, compreendeu-o mais...Não poderia deixar o fio do crochê se cortar, embaraçar, desacarinhar o mundo...

2 comentários:

Ricardo Fabião disse...

há dias que não visitava esta página...
chego cá e te encontro compondo tão rico tecido textual.

Lembrei-me de Clarice, suas colchas bem tecidas, seus abrigos, histórias de gente, cotidiano.

Lindo, Keila.
Não há como não ser estando aqui.

Beijos.
Ricardo

Nina Blue disse...

Keila, sou uma crocheteira nata, dessas que aprendeu com as tias e com a vó Cecília. Aliás, deu uma saudade...
Dos lindos vestidos da Tia Maria, das toalhas da vó Cecília, das roupas que eu fazia e por falta de tempo, não faço mais...
Lindo texto!