quarta-feira, 2 de junho de 2010

Febre

Nunca tivera tendências ou características febris, embora sempre medisse temperatura alta, enquanto outros eram amenos. Pensava que era coisa de coração e mente agitados a fazer o sangue correr veloz e a esquentar o corpo. O prenúncio de qualquer enfermidade nela, virótica ou bacteriana, jamais se combinava com estados febris; reagia com outros sintomas clássicos, mas não tinha febre, até que um dia chegou; veio-lhe com intervalos de calafrios, seguidos de mais quentura. Disseram-lhe que finalmente a febre se manifestara, que talvez fosse malária, pois ela tinha, há pouco, visitado um estado do norte. Fez os exames e nada foi diagnosticado. O aquecimento vinha como uma carícia em cada parte do corpo, ou mesmo um beliscão de assustar; torturas diminutas e repetidas. Vez por outra as sensações agigantavam-se, e pareciam percorrer um caminho feito corrente elétrica em fio de carne. Queimada a carne exalava odores que a incomodavam, embora ninguém ousasse dizer que percebia, mas sempre a alertavam do rosto vermelho e das mãos abrasadas. Ela tinha uma urgência qualquer que a inquietava, desviava pensamento, desconectava tudo. Seu equilíbrio parecia cada vez mais frágil, cada vez que essa corrente quente percorria suas reentrâncias e falhas da alma. Tudo o mais se perdia naqueles momentos febris, posto que tudo era ensejo de sonho, solidão e amplidão, sensações opostas multiplicadas. Passou tempos assim, na alternância do frio e do quente, intermitente, nessa febre maleita. Um dia sua mãe estranhou o passar da hora de todo dia, da hora de levantar. Girou a maçaneta e quase desmaiou diante da figura da filha abrasada sobre a cama, a exalar um cheiro ácido e adocicado. Pensou o pior. Mas ela levantou-se sorridente a contar do sonho que tivera, da dança em volta da fogueira, das maçãs em brasa soltando mel, do calor no peito e na alma, dos abraços que deliciara em torno do fogo e do degustar das frutas vermelhas; os sentidos todos inundados; olhos flamejantes de luz, boca de saliva fluida como rio doce, nariz de abas levantadas a sentir toda sutileza do cheiro, mãos em mãos, em peles de conforto, ouvidos em som de risos, em silêncio de risos. Depois desse dia ela não teve mais febre, era só calmaria; e de vez em quando exalava um perfume adocicado...

7 comentários:

Paulo disse...

Belíssimo texto, Keila. A febre feita urgência de sentir. Prabéns.

Maria disse...

Me trouxe lembranças de Cem anos de Solidão misturado com Tereza D'Ávila... muito louco! Muito bom!

Eu tenho febre quase nunca, a última foi há uns 10 anos eu acho. Mas às vezes eu sinto a pele queimar, é engraçado.

Peguei meus prêmios e fiz um postzinho pra você, agradecendo.

Beijos!

Grã disse...

Frio


Bjs

rico disse...

Vi um comentário seu no meu blog e fiquei curioso a respeito dos caminhos que te levaram a ele. O nome do meu blog é fatosdalingua. Tá lembrada ainda das minhas bobagens publicadas? Abraço. Ah! Ainda não li teu blog, mas vou fazer isso e depois te conto o que achei. Abraço.
Rico

rico disse...

Legal... POr acaso... Seja bem vinda então!
Abraço!

Srtª Elis° disse...

Nossa que que lindo tetxo...bastante inteliengente de se ler....


um xero flor!

Marga Dambrowski disse...

Um mix de realismo fantástico com fantástica doçura.
Adorei teu texto. Adorei teu canto.

Beijos do Sul!