quarta-feira, 19 de março de 2008

Sonora Amargura

Tudo começou de madrugada, logo depois da ingestão forçada de uma imensa cápsula de tetraciclina. Lara nunca entendera o motivo de cápsulas tão gigantescas para cobrir uma quantidade ínfima de pó; só mesmo para agarrar na garganta, no esôfago e dar aquela sensação ilusória de que tamanho remédio, tamanha cura. O sono vinha, ela dormia. O sono ia, ela sentia aquela tetra volumosa, inconveniente, que não deslizava nem a poder de reza.

Finalmente aproximava-se as seis da manhã. Foi ao quarto da mãe se queixar da noite terrível, do estômago, enrolada no lençol e com travesseiro na mão. A mãe a olhou com a aquela cara de quem já conhecia a cena. ‘Lá vem essa menina...meu Deus o que será...ou vem por insônia ou dor...é sempre assim.’ - “Que que é Lara?” – “Passei uma noite de cão, tô passando muito mal, é o estômago; desse jeito como vou passar o dia, resolver tudo que preciso hoje? A cada ‘drama’ exposto um movimento doloroso na boca do estômago. – “Espera aí...vou preparar um chá de boldo.” Mãe é uma maravilha, e de filha dramática então, muito mais.

Veio então o famoso chá morninho, carregado pelas mãos solicitas de Rute. Adentrou o quarto e encontrou Lara sentada na beirada da cama com a costumeira cara de desespero; não pôde conter as gargalhadas. Enquanto isso, Lara esbravejava contra o sorriso fácil da mãe em face de tamanha tragédia. Pegou o copo e começou a engolir aos poucos. Não era nada fácil, os goles queimavam a cada escorregadela goela abaixo. Aquela amargura escorrendo e Lara cada vez mais amargurada. E Rute tranqüila, sempre crédula dos poderes mágicos do boldo; eles nunca falharam; não seria desta vez. E não foi mesmo. O estômago de Lara permaneceu meio dolorido por algumas boas horas, mas não tão indomável que a impedisse de realizar as tarefas do dia.

Boldo! Agora Lara percebia a sonoridade nem tanto amargurada do exclamar do Boldo. Boldamos nós, boldam vocês e segundo uma amiga de família de Lara, de muitos anos: “minha mãe sempre disse, se está se sentindo mal, toma Boldo, porque ele serve pra curar sete tipos de mal.” Coincidência ou não Naildes fez uma visita à casa de Lara exatamente na tarde depois da manhã terrível, em que seu estômago se contorcia, ardia, fazia nós.

O chá de Boldo foi parar até em página da Bíblia de Rute, justamente, em cima de uma oração que fazia referência a umas dores que ela sentia e não conseguia explicar. O restinho do líquido ficara sobre a mureta da janela do quarto e desabou sobre o livro sagrado no salmo 102, que dizia entre outras lamentações: “Pois meus dias desaparecem como fumaça; meus ossos queimam como ardor de brasa” e “Por causa do meu suspiro dolorido, meu osso adere em minha carne.” Rute deu por definitivo o milagre boldal e finalmente pôde levar o texto descritivo detalhado para a próxima consulta médica ortopédica.

2 comentários:

Anônimo disse...

Keila, onde você arruma tanta criatividade, menina?
Parabéns sempre.
Beijos
Liza.

Unknown disse...

Keiloca,
eu vi o rosto da Laura...rsrs...e da Dona Rute...mãe...ao ler o texto.rsrsrs
Bjussss