Histórias sempre estão na fronteira; por mais que tentemos acomodá-las elas esbarram no real vivido, ouvido, lembrado; elas esbarram no imaginado, sonhado, criado...por isso evocamos os entrelugares, onde cabem o contraditório, o surpreendente e até o esperado...todos eles permissíveis à intromissão do eu e também à sua ausência, mesmo disfarçada.
terça-feira, 19 de maio de 2009
Reconhecer
Ele chegou sorrateiro por trás e colocou suas mãos sobre os olhos de Lia. Não era uma tentativa de ser descoberto como habitualmente se faz, mas de ficar conhecido só pela suavidade e pela temperatura da pele. Temia que seu rosto algum dia revelasse a ela algum traço ou traçado obtuso, alguma incongruência de sentimentos, ou mesmo a ausência completa, naqueles momentos de esquecimento dele mesmo. Toda vez ele repetia esse mesmo gesto na tentativa insone de virar uma surpresa permanente na vida de Lia, mas a virada da moça vinha como um vendaval e aquele beijo rápido de um já visto tirava toda força imaginativa dele. Ele sonhava com uma recepção de enlace desconhecido, quase um reconhecer todo dia; as mãos dela na dele num passeio familiar e inóspito, encantador e aterrador. Então ela se viraria lenta de olhos ainda cerrados e buscaria seus lábios como quem fareja uma congruência, um encaixe inevitável, acolhedor. E assim ele se repetia no gesto e ela também, sem palavras e explicações, até que ele um dia desistiu e subsumiu à rotina dos gestos dela; resolveu olhá-la sempre de frente, ainda que temesse desnudar-se de olhos sem brilho, mandíbulas inertes, quase um desprezo da face. Um dia depois de muitos dias de gestos de desencanto, resolveram não mais se ver, e Lia sonhava todos os dias com aquela virada que ele imaginou; de olhos fechados a farejar e tatear os caminhos da face dele.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
E em que momento não disseram o que realmente desejavam? Em todos.
Postar um comentário