segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Caracóis no caminho

Retornava do trabalho quase sempre no mesmo horário. Passava pelo mesmocaminho que cruzava a praça principal de seu bairro, entre a última luz do sol e a primeira da lua. Não sabia contar exatamente sobre todas asconstruções que se seguiam, mas eram muitas de todas as cores e estilos, com reboco, sem reboco, algumas sobre as outras. Tinha também meninos que soltavam pipa já em meio àquela luz beirando o crepúsculo, como se nãoquisessem se despedir do dia. Um bêbado quase sempre se repetia no caminho; cambaleante, falando uma língua alta, rosnando um desagrado qualquer, exatamente naqueles momentos em que Carminha passava no seu passo ritmado, nem tanto gingado, bem mais apressado. Um passar de quem não tinha tempo para parar e olhar.

Seguia, descia, subia e chegava ao topo do caminho para descer ladeira abaixo novamente numa urgência danada. Olhava, registrava alguns elementos, mas passava. Foi quando um dia desses chamaram-na de súbito. Eram quatro homens. Os trajes nem tanto limpos e as mãos engraxadas, de uma escuridão poeirenta. Um deles levantou-se rapidamente do banco extenso de curvas da praça: - Oi, tudo bem? – Oi, tudo bem, respondeu ela, já adiantando o tronco em direção à seqüência do caminho...melhor responder... Aí sim fixou o olhar e viu que eram quatro hippies, aqueles seres dos anos 70, adeptos, segundo muitos, da famosa tríade: sexo, drogas e Rock'n'Roll. Queriam simplesmente mostrar as "bijus". Foram logo dizendo: Que aura você tem..., já tentando, é claro, seduzir a possível cliente. Carminha percorreu as peças com os olhos na cadência de seus passos, até que chegou aos brincos, os penduricalhos que mais lhe agradavam. Havia um com uma pedra verde que gostou muito. – Quanto custa esse? – Dez reais. – Deixe-me ver se tenho esse dinheiro aqui. Abriua bolsa, a bolsinha de moedas com notas...retirou as notas. _Só tenho sete,faz por sete? E eles com aquela cara de paisagem. - Deixa eu ver se vocês têm algo mais barato...- Ah, gosto mesmo é de brincos... – E esse? – É africano. – Quanto é? – Quinze reais. – Ihh...só estou gostando dos mais caros. – Depois você passa aqui...amanhã...e dá o resto, disse um deles. Resumo: ficou por sete mesmo. Carminha foi logo pegando os brincos de pedrinha verde para apertar o passo e seguir. - Não... espera! Tem a poesia. O nosso promoter vai fazer a trilha no tambor. Além disso, você tem direito aos caracóis do meu cabelo. Então, o rapaz começou o recital em voz baixa em frente à Carminha, com direito a batuque e tudo mais.

Só dois dos quatro hippies falavam e se movimentavam: o artesão e opromoter. Os outros permaneceram sentados e mudos; de vez em quando sorriam. O artesão veio com um alicate e um fio prateado. Começou a entortar e recitava uma história de gnomos e fadas e festas de amor e brincadeiras.Carminha ficou olhando para ele e ele para o arame, que ia adquirindo certa forma. Carminha desatenta de novo disse ao fim da poesia: obrigada, eesboçou a permanente vontade de ir... já estou me demorando muito poraqui... - Tem o caracol..., advertiu o artesão - Ah sim...Era um brinquinho de pressão no formato caracol para colocar bem na cartilagem da orelha,simulando um piercing. O rapaz de mãos enegrecidas e habilidosas pediulicença, afastou os cabelos da moça e fixou seu caracol. O artesão tinha um compromisso com os seres da floresta mágica: fixar caracóis e manter oscabelos grandes. Carminha se lembrou do Sansão: - Não corte os cabelos,senão o Sansão perde a força...e sorriu! Disse isso meio semgraça, disfarçando, já que a poesia não lhe pareceu muito legível. Mas foi embora a passos rápidos, feliz pela "homenagem" e com os brincos na mão. Acombinação sexo, drogas e Rock'n'Roll se anuviou na sua mente. E todos quesempre dizem: "não tem hippie autêntico mais. É tudo comércio." Se podia ou não chamá-los de hippies, Carminha não estava bem certa. Mas pensou: tristevida deles se não fosse o comércio e toda aquela parafernália de marketing e sedução: grito, frases feitas, tambor, poesia e caracol.

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