segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Cafezinho Revigorante

Será que algum dia teve ilusão? Ou não será esta a que vive agora, a mais verdadeira, a única possível? Maria enlouquecia a olhos vistos e os dela afundavam cada vez mais nas órbitas; pequeninos, foscos e desnutridos. Hoje, perto dos oitenta anos, ainda se movimenta com certa agilidade e tem uma ansiedade incomum nesta idade. Sempre se dedicou à catação de entulhos de toda sorte, principalmente os papelões, e os carregava todos na cabeça já achatada pelo tempo e enfronhada em pano grosso.

Quando eu era pequenina, ela aparecia lá em casa, pedia um cafezinho, nunca um pedaço de pão. As primeiras lembranças dela só tenho pelo relato de minha mãe. As segundas já me lembro melhor: - Oi Menina? Sua mãe tá boa? Lembra-se de mim? Sua avó me dava sempre um cafezinho...Depois sua mãe...Era assim sua abordagem, meio pelas beiradas e com uma gentileza de rainha. No final: Deus lhe pague e um sorriso de gengivas finas de bebê. Levantava lentamente a turma de papelões com os braços finos de pequeninos bíceps enrigecidos e seguia a passos rápidos, revigorada pelo cafezinho.

Passaram-se anos, eu cresci, e Maria continuou a passar lá em casa esporadicamente em busca do cafezinho, até que um dia não apareceu mais. Ela morava em uma dessas casas de apoio a desamparados junto com a irmã doente e acamada. Até hoje não sei como alimentava a tal irmã, já que ela mesma parecia sobreviver do cafezinho e na melhor das hipóteses, do pedaço de pão. Outro dia desses, eu e mamãe a encontramos no seu caminhar acelerado, mas sem o peso dos grossos papéis. Ela não nos reconheceu, mesmo com nossa tentativa de reavivar sua memória. A irmã tinha morrido e ela confessava: - Não quero ficar mais naquele lugar...eles querem me prender lá...querem todo meu dinheiro...Olhamos para ela sem entender qual era o dinheiro.

Mais recentemente vi Maria. Estava sentada em um canteiro, desses baixinhos, na porta de uma casa de esquina. Sempre na rua, perambulando, sem querer voltar. A sacolinha de plástico fino, apoiada na perna fina. Usava um lenço azul de organdi e tateava o rosto com os dedos calejados. Parecia que a face lhe escapava; todo seu corpo era uma ilusão. Até o cafezinho...não se lembrava mais de pedir naquele seu jeito “volteado” e delicado.

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