segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Mezinda

Morava no conjunto de casinhas improvisadas na periferia do bairro. Até que chegou o “progresso” e a construção da avenida obrigou-a a sair do barraco. Nada nunca se soube sobre seus familiares. Era sozinha e ganhava seu dinheirinho às custas da roupa suja dos mais bem postos do bairro. Na verdade, lavava e passava. Conheceu dona Rute por intermédio das vizinhas Noeme e Dozinha, que a recomendaram como pessoa esforçada e honesta. Mas a idade já avançada tornou a profissão cada vez mais custosa para ela e para os outros, que se doíam de vê-la já com certas dificuldades. A aposentadoria veio com a mudança abrupta da antiga morada.

Efetuada a desapropriação da vila, Mezinda foi levada para a Associação São Vicente de Paula dentro do bairro, onde tinha um pequeno quartinho, com água, luz, cesta básica e, eventualmente, uma consulta médica. Sofria de elefantíase crônica em uma das pernas e certa vez trocou o pagamento de dona Rute por um par de tênis. Precisava muito de um. Lá foram elas para a Sapataria Butinada, a mais próxima do bairro, fazer a compra. A tarefa não era nada fácil, já que um dos pés e tornozelos eram bastante inchados. Experimentaram vários pares, daqueles tipo quixute, bamba e rainha dos antigos, todos de cadarço e duros. Os tênis mais macios ainda não haviam chegado aos mercados brasileiros. Mezinda ficou com o bamba mesmo e usava o par direito sem amarrar e dobrado no calcanhar. Ficou feliz com a troca.

Rute não contratou mais os serviços de Mezinda, mas continuou a amizade. Logo que soube que ela estava em uma associação no bairro mesmo, pôs-se a visitá-la de vez em quando. Ia sempre com Júlia, sua filha única. O cheiro de feijões cozidos invadia todo o quarto de Mezinda. Era sempre assim. A panela borbulhante, escurecida pelo fogo, exalando vapores. Mezinda gentil: - Rute...tem um moço tão bonito, cabelo pretinho como o seu...vou te apresentar...Rute havia se separado do marido quando Júlia ainda mal completara um ano. Era jovem, bonita e sem namorado. Mezinda não se conformava. Rute incrédula da beleza do rapaz, sorria para Mezinda e falava: será?

Além dos feijões tinha as sobrancelhas de Mezinda. Tintas de carvão. Não descuidava nunca. Mas os pêlos no queixo, encaracolados e crespos, de sua raça negra, já eram brancos, e eles não levavam o carvão. A cabeça sempre encoberta pelo lenço, que raramente deixava escapar um pêlo sequer. Recebia mãe é filha com alegria, oferecia feijão, namorado e atenção sem igual. A última vez que foram lá, Mezinda estava meio adoentada. A cortesia viva, mas enfraquecida. Os feijões cada vez mais juntos e ressecados na panela. – Mezinda...,.dizia Rute. – Esse feijão vai queimar...Nesse dia, a gentil Mezinda apagou o fogo do feijão. Tempos depois, Rute e Júlia souberam da morte dela. Júlia lembra-se até hoje do cheiro dos feijões da Mezinda e acha curioso como os cheiros ficam na mente tão bem guardados.

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