quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Pretinha

Era imponente a pretinha. Olhos frontais, novilha bem conformada, escore médio. Só os chifres pareciam destoar, sobretudo para a ordenha do leite. As recém formadas ‘veterinárias’ fizeram longa viagem, porque Pretinha morava nas terras do meio do país. A propriedade era um pedaço de uma maior dividida entre vários irmãos. As moças tencionavam usar seus dotes acadêmicos; fizeram mochação de bezerro; deixaram os responsáveis do curral indignados. ‘Vê lá se isso é serviço pra mulher.’ Depois de toda labuta, resolveram fechar com chave do ouro o dia. Vamos fazer a descorna? Sugeriu uma delas. A famigerada cirurgia serve para dar um aspecto bonito, para facilitar o manejo...nada muito além disso. Mas quando se complica a tal descorna, é sinusite da brava, pontos infecionados. Só que esse não foi o caso; o caso foi bem pior. O campo cirúrgico ficou restrito; os olhos fixaram-se tão longamente nos chifres, que pretinha sofreu, sofreu...Esqueceram-se da pretinha...Deu o último suspiro, morreu...Morreu? Repetia uma delas sem acreditar...Como pode ser? A bichinha ficou horas em decúbito lateral com seus órgãos digestivos enchendo-se de gases, seu pulmão comprimido...e em nenhum momento atentaram para a vida em suas mãos, que sequer precisava da tal cirurgia estética...cheia de vasos a esguinchar, pele escassa para cobrir o que já era coberto pela natureza. Passaram a noite separando os músculos da pretinha para refrigerar e ‘aproveitar’; atordoadas, repensando os motivos da morte. Correram em busca da explicação pelos corredores da escola de veterinária, e ninguém soube dizer com precisão o que teria ocorrido. Várias possibilidades foram aventadas, mas e a alma da pretinha, e seus olhos frontais brilhantes? E seu corpo todo, seus parâmetros vitais desprezados e a peia a impedindo de fugir? Pretinha nem sabia que era bonito ficar sem chifres e que eles eram tão ameaçadores. Nenhuma das duas moças seguiu carreira, não se sabe se por causa da Pretinha.

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