terça-feira, 10 de junho de 2014

Um despertar

Passara meses dormindo, talvez anos; só acordava por força das obrigações cotidianas; não que não lhe trouxessem algum prazer, por certo traziam. Mas o sono vinha em qualquer recostar, e vinha pesado em sonho esquecido, uma espécie de inércia, dormia e não queria acordar. A realidade parecia-lhe pouco curiosa, parecia-lhe que o sono era um sustento da alma descrente, da alma que cansava o próprio corpo. Não mais que de repente despertou num susto, viu sentido onde já não mais havia; as imagens ordinárias ficaram suaves, familiares, amigáveis. Queria passar por outras ruas, alternar o passo com dança, recitar em alto tom, queria conviver. Seu corpo já não era o mesmo, cada parte dolorida se compadecia de outra, de forma que se criou um mecanismo de absurda solidariedade. O mínimo toque era sentido em potência, não como delírio. Cria que não sonhava, embora sonho fosse sua matéria principal. Era tão real aquele tempo sem planos, de futuro incerto, mas certo o presente de sentir. Não via verdadeira ressonância nisto tudo, salvo em si e em almas parecidas para quem contava seus pensamentos insanos que lhe pareciam tão saudáveis. Essas almas irmãs davam a ela um pouco de alento no mundo sem sonho. E ela não separava corpo e alma; todo o erotismo parecia sangrar e pulsar por dentro e por fora. Ela era rio, água pra peixe nadar e desovar. Ela era um amontoado de químicos em propulsão criadora. Ela também era terra pra brotar e se refazer em fertilidade mineral, a revolver toda e qualquer camada mais profunda. Ela era um pouco fogo pra queimar, mas sem a menor intenção de machucar qualquer que fosse; queria provocar um aquecimento de estufa, brando e prolífico. Ela também era ar; e solta no ar podia voar.

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