terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Picos

Há alguns anos a família Silveira fez uma longa viagem para o Sul. Não foi a única, mas, sem dúvida, uma das mais memoráveis. Na melhor das hipóteses, o percurso levaria cerca de trinta e seis horas de ônibus. Como o destino era de uma estadia de cerca de seis meses a um ano, as bagagens eram significativas; quase todos os objetos pessoais e roupas iam nelas. Os ‘baldeamentos’ eram freqüentes, entretanto, um deles, o da Rodoviária de Picos, marcou mais. Picos era uma cidadezinha mais ou menos próspera do Piauí, se é que se pode falar em prosperidade naqueles lados do sertão. No entorno da cidade havia muitas palmeiras do tipo babaçu, que além da palha rendia um óleo bastante valorizado. Mas para Dona Iolanda, a matriarca do clã, pouco importavam os babaçus e seu destaque na região. Quando aportavam, o que interessava mesmo era desembarcar as pesadas malas.

Enquanto isso, chegavam outros ônibus, como o da viação Princesa do Agreste, vindo de Crato, interior do Ceará. Para surpresa de Iolanda, a mala principal, que trazia todos seus pertences, não estava lá. Começou então a choramingar: - Tudo estava lá; os presentes da minha nora, minhas melhores roupas. Os olhos grandes marejados e os dedinhos grossos pequeninos calejados pela face. Quem escutava tudo atento era seu Turíbio, já matutando sobre quais providências iria tomar. Primeiro, acreditaram piamente que a mala havia sido roubada, e foi com muito custo que cogitaram a possibilidade de que ao esquecimento poderia ter se seguido uma ‘boa alma guardadeira’, lá mesmo em Floriano, de onde partiram.

Em meio a toda confusão, desciam várias pessoas de todas as bandas nordestinas, entre eles Felisberto, figura bastante típica, de fronte e nuca abauladas, e conversa bem esticada. Era um cearense cratense bastante conversador, mas seu forte mesmo era a paquera. Fixou-se imediatamente em Mariazinha, a caçula dos Silveira. Falava qualquer coisa, desde “o ônibus está demorando a chegar, a sair”, até o natural “o tempo está quente”, e lançava olhares namoradeiros e sorriso largo. E Mariazinha? Nada de ceder aos seus gracejos.

Enquanto isso, seu Tu se dirigia à direção da rodoviária, com o intuito de descobrir o que realmente havia acontecido. Seguiu magrinho, de andar tombado, meio desequilibrado, envergando-se. Foi então que soube da boa notícia: alguém em Floriano havia guardado a mala de Dona Ió. Assim, tudo se acalmou. O número de bagagens nessas paragens do sertão nordestino era sempre um exagero; elas se amontoavam de tal forma umas sobre as outras, que esquecê-las e extraviarem era mais que esperado. Somava-se a isso, os inúmeros vendedores ambulantes de todos os tipos, aos gritos de ‘castanha de caju’, ‘doce de buriti’,‘umbu’...

Aliviados com a informação sobre o paradeiro da bagagem, os Silveira embarcaram. Marieta, outra filha, essa mais velha, foi tomada de súbito por enjôo incontrolável que perduraria toda a viagem. Passou quase todo o trajeto pendente na janela, tentando expulsar os corpos alimentícios que nem existiam mais. Mariazinha sofreu novo assédio, desta vez de Ariovaldo, moço ruivo, gordinho e também gracejador. Ari beijaria Mariazinha se ela aceitasse até o seu último destino, onde teria que desembarcar malas, geladeira, TV...presentes para sua mãe. Ele passou horas sobre a poltrona da frente olhando para Mariazinha e falava sem parar. Para variar, a moça não fez bom julgamento do moço. Achou Ari feio e bobo. Resultado: não deu a mínima para ele; não por falta de incentivo de dona Ió que dizia: - Firma namoro minha filha...desse jeito vai terminar sozinha...

Nesse ônibus teve até casal que se conheceu na viagem e que não se largava por nada. Nas paradas levantavam meio preguiçosos de boca inchada e vermelha. A comida, que vinha em marmitas e até em sacos plásticos, era o ‘frito’, espécie de farofa com carne de frango ou carne seca bem fritos que inchavam no estômago. Alguns desciam nas paradas, tomavam aquele banho fresquinho para aliviar o calor inclemente, e voltavam de sorriso aberto a pentear os cabelos que respingavam. Iam também crianças choronas, em tempo de fraldas, e o cheiro do banheiro não era nada convidativo. Alguns iam com as pernas intumescidas pela longa viagem. Mas todos seguiam cantantes e falantes, numa animação de dar gosto; e a ‘floresta de mandacarus’ lá fora margeando os viajantes. Em Picos, tudo eram Picos: picos de gente, picos de bagagem, picos de enjôos, picos do gritos, picos de galanteios, picos de beijos....

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