Luzia já estava no limite de sua benevolência. O velho decrépito não ia mais ao banheiro, não se alimentava sozinho e ainda dava uns urros, sua mais nova aquisição lingüística após o último acidente vascular cerebral. Além disso, era vítima do esquecimento, até dos pequenos gestos mais cotidianos. A esposa de Constantino, dona Amélia, também já acometida pela fraqueza óssea, tinha um andar vagaroso, um pescoço sempre pendendo para o lado esquerdo devido às tortuosidades da coluna cervical e reflexos das outras. Ainda assim, ia ao mercado quase todos os dias fazer as compras da casa, sempre caminhando pelo meio fio para evitar as irregularidades dos passeios. Levava sempre a sacola riscada pendurada em um dos braços e uns óculos de lente espessa no rosto.
Os dois velhos moravam sozinhos. O último filho solteiro, taxista, foi trabalhar em outra cidade e deixou a incumbência ao irmão Augusto: gerenciar a vida dos velhos. Foi aí que Luzia completou a cena. Ela era o que se podia chamar faz tudo, inclusive arrumação de babadores, troca de fraldas e muleta ambulante de seu Constantino. Dona Amélia não dava conta mais de cuidar do marido e eram freqüentes os gritos estridentes que vertia sobre ele cada vez que ele tentava se levantar da cama ou da cadeira de rodas. Dizia-se na vizinhança que Amélia batia no velho e, de fato, ouviam-se uns sons altos e secos, parecendo socos e, é claro, os berros. Todos ficavam imaginando, compadecidos da judiação. A verdade é que ninguém compreendia muito bem como a velha Amélia, tão debilitada, podia fazer isto com Constantino. A “tortura”, geralmente, acontecia à tarde, e naquelas mais modorrentas a sensação era de sufoco, tamanhos os grunhidos que escapavam corridos e abafados.
A rotina seguia sempre assim: compras para casa em todos os supermercados da redondeza, lidas na casa silenciosa, salvo os ‘bate-bocas’ entre o casal. Foi quando chegou Luzia, um alento para Amélia, que mal se ajeitava sobre as pernas e tinha que fazer de um tudo. Os dias foram se passando e os vizinhos passaram a não ouvir mais as tragédias pós-matinais. Até que em um dia desses de inverno seco, Constantino contraiu uma forte gripe e precisou ir ao médico. Dona Amélia ligou para Augusto e pediu que ele levasse o pai. O filho chegou, fez o custoso deslocamento do pai até o carro, depois de descerem alguns degraus, que pareciam infinitos dada a dificuldade da manobra. Enquanto isso Luzia matutava: os velhos não têm dinheiro mesmo; a aposentadoria do velho mal dá para o aluguel e as despesas da casa...e afinal de contas, o filho é quem ficou responsável por acertar as contas comigo. O combinado era o pagamento por dia, que nunca vinha.
Assim que Augusto chegou e acomodou o dono da casa, Luzia pôs-se a fazer a cobrança. – Augusto, vocês me devem sete dias. – Não posso...hoje não posso pagar....- Mas como? - Vou pagar, mas hoje não posso...Luzia começou a alterar a voz, Augusto também. Iam em direção ao corredor de entrada do predinho como que anunciando a discórdia. - Preciso do dinheiro, retrucava Luzia. - Hoje não posso, pago no final do mês...batia o pé Augusto. Até que Luzia lançou seu doloroso impropério: e eu vou ficar limpando bosta de velho sem ganhar nada? A discussão durou cerca de duas horas seguidas e alternava-se entre Luzia e Augusto, Augusto e a mãe, a mãe e o filho. Nem um dos três se entendiam; as mágoas aflorando. E Constantino lá, feito criança, mal sabendo das sombras de corpos e de vozes...De vez em quando, vinha uma parca lembrança do tempo em que saía para a farra, bebericava, pitava seu cigarrinho, enquanto Amélia arrependia-se dia após dia do ajuntamento. Constantino sempre distante envolvido com tudo menos com ela. Antes na rua, nos festejos solenes e reclusos; hoje na fragilidade insistente e nos devaneios sem nexo.
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